quarta-feira, 19 de novembro de 2014

Cecília vivera mais




Dias sem o tempo e a complicação das ruas da cidade, do cheiro irritado e miserável de quem busca o que nem sabe achar. As migalhas dos lugares ocos, os porres de uma vida amarga. Era mesmo um nervo a cada cigarro e no findar do dia, sobrava a expectativa de um amanhã diferente. O sabor da sujeira na alma era o pior de tudo depois de passar por tanta gente que traz a mediocridade nas veias as feridas expostas. Então mais um cigarro para ver que quem está do lado é mero prazer sobrevivente que levanta da cama antes que a noite acabe. A mais louca ilusão que sentia Cecília, o vazio.
Era assim que voltava para casa, exausta, sentada no banco do ônibus e fumava o último cigarro daquela madrugada. Nesse instante  parou e lentamente olhou para si como se desconhecesse aquelas mãos, as unhas num vermelho vivo, estava cansada de tudo. Mais uma vez não entendia por que estava voltando ou  por que procurava aquele apartamento do outro lado da cidade. Não era seu mundo. A começar pelos sobrados de cômodos claustrofóbicos. Talvez aquela realidade fria trouxesse algum prazer, ou quem sabe a forma com que todos ali buscavam a felicidade. Era  como se os impulsos inquietassem mesmo a vida. Não querer entender, apenas sentir. Isso era tão importante.Foi assim que Cecília sentiu Antônio, como um devaneio a cada semana no cúbico espaço em que morava.
Amor bruto. Se é realmente esse o nome do devaneio mais inimaginável de Cecília. Mulher sensível a buscar o gosto de um homem de barba mal feita.
E como num ritual uma vez por semana, chegava e sabia o quanto era bom esperar Antônio e seus rompantes eufóricos e as mãos que tocavam suavemente. Euforia que se traduzia numa intensidade lenta a percorrer a noite.
A verdade é que para Antônio ela era o amor que nunca teve. A mulher doce e sensível de traços delicados.
E nesse medo de perder e mais ainda no de se achar é que Cecília começara a perceber naqueles olhos o que chamara de bruto amor. Era mesmo bruto, pois o que não tinha amarras, apavorava.
Era a falta de limites, sentir, mas a sensação de liberdade não existia. A ilusão de que podia chegar e sair sem hora e sem ninguém a lhe cobrar mero gesto de apego.
O fato é que nunca conseguiu entender que fugir fosse pior do que esperar o dia amanhecer e aceitar o quanto queria voltar quando a noite batesse.
Bruto amor era não se deixar.
Não sentir o gosto da água nos lábios ressecos de tanto falar em silêncio, era negar apego tão grande por quem só lhe fazia bem.
Mas como estranhava tudo quando deixava aquele canto. Mas do que nunca criara dentro dela aquele lugar que respirava o silêncio do
mundo. Forma insana de amar. 

Cecília vivera mais, o que não tinha de ser.


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