Cecília vivera mais.
Dias sem o tempo e a complicação das ruas da cidade, do cheiro irritado e
miserável de quem busca o que nem sabe achar. As migalhas dos lugares ocos, os
porres de uma vida amarga. Era mesmo um nervo a cada cigarro e no findar do
dia, sobrava a expectativa de um amanhã diferente. O sabor da sujeira na alma
era o pior de tudo depois de passar por tanta gente que traz a mediocridade nas
veias e feridas expostas revestidas de uma forma de prazer inútil, destrutível,
incansável. Então mais um cigarro para ver que quem está do lado é mero prazer
“sobrevivente” que levanta da cama antes que a noite acabe. A mais louca ilusão
que sentia Cecília, o vazio.
Era assim que voltava para casa, exausta, sentada no banco do ônibus e fumava o
último cigarro daquela madrugada. Nesse instante parou e lentamente olhou para
si como se desconhecesse aquelas mãos, as unhas num vermelho vivo, estava
cansada de tudo. Mais uma vez não entendia por que estava voltando ou por que
procurava aquele apartamento do outro lado da cidade. Não era seu mundo. A
começar pelos sobrados de cômodos claustrofóbicos. Talvez aquela realidade fria
trouxesse algum prazer, ou quem sabe a forma com que todos ali buscavam a
felicidade. Era como se os impulsos inquietassem mesmo a vida. Não querer
entender, apenas sentir. Isso era tão importante.
Foi assim que Cecília sentiu Antônio, como um devaneio a cada semana no cúbico
espaço em que morava.
Amor bruto. Se é realmente esse o nome do devaneio mais inimaginável de
Cecília. Mulher sensível a buscar o gosto de um homem de barba mal feita.
E como num ritual uma vez por semana, chegava e sabia o quanto era bom esperar
Antônio e seus rompantes eufóricos e as mãos que tocavam suavemente. Euforia
que se traduzia numa intensidade lenta a percorrer a noite.
A verdade é que para Antônio ela era o amor que nunca teve. A mulher doce e
sensível de traços delicados. Tanto quanto ele,ela também era plena em sentir,
desde o cheiro das coisas, como a força de cada olhar e o medo de perder.
E nesse medo de perder e mais ainda no de se achar é que Cecília começara a
perceber naqueles olhos o que chamara de bruto amor. Era mesmo bruto, pois o
que não tinha amarras, apavorava.
Era a falta de limites, sentir, sensação de liberdade. A
ilusão de que podia chegar e sair sem hora e sem ninguém a lhe cobrar mero
gesto de apego.
O fato é que nunca conseguiu entender que fugir fosse pior do que esperar o dia
amanhecer e aceitar o quanto queria voltar quando a noite batesse. Bruto amor
era não se deixar.
Não sentir o gosto da água nos lábios ressecos de tanto falar em silêncio, era
negar apego tão grande por quem só lhe fazia bem.
Mas como estranhava tudo quando deixava aquele canto. Mas do que nunca criara
dentro dela aquele lugar que respirava o silêncio Antissufocante do mundo.
Forma insana de amar.
Cecília vivera mais, o que não tinha de ser.
Dezembro-40 mil vidas-envelheço. No espelho nunca esqueço meus 20 anos. Tudo é memória, o presente, sábio.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2022
Cecília vivera mais
Crônica, 2010.
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